Gose escura com os restos da cozinha

Hibiscus do Continente, sementes de coentros de algures, flor de Sal gourmet e raizes de loja de homebrew. Mais mistela que isto não dá.

N: O meu saco de sobras têm estes ingredientes.
A missão, caso decidam aceitá-la, é transformar isto numa cerveja decente de se beber.
A mim cheira-me a Gose.
O que dizem os vossos olhos?
J: Kitchen Sink Black Gose?
N: nem vou discutir mais…
J: O P. quando ler, fica com calafrios
J: Vamos buscar a cor do sinamar / melaço
J: Para acidificar, iogurte, que nem chungas do homebrew
P: Black Gose dá-me vinegar strokes, não calafrios.
N: Ora, melaço, licorice, casca de laranja e hibiscus. isto tem tudo para correr mal, não vejo porquê não avançar
P: Fazemos Sour mash para maximizarmos mesmo as hipóteses de dar merda?
J: Claro, só faltava este caralho com boas ideias <3
N: feito, vou adicionar ao nosso roadmap
J: Laranja, coentros, licorice, hibiscus, melaço, sal, Sour mash, sinamar e tripla decocção
J: Imperial Sour mashed Black Gose
N: god damn!
N: I love this game

Como alguém disse em tempos, as cervejas do estilo Gose são melhores quando são simples. Por isso decidimos fazer uma Gose. Preta. Com melaço, alcaçuz, casca de laranja e hibiscus. Brassagem básica, com acidifação em formato “sour-mash”. Assim, simples, como a vida.

Gose é mais um estilo de cerveja em que as raízes mudaram de sítio. Originalmente proveniente da vila de Goslar no século XIII, este estilo está intimamente ligado ao rio Gose que por lá passa e emprestava a água rica em minerais provenientes das minas, em especial o sal. O estilo, naturalmente salgado, caiu em desuso, mas voltou novamente no século XVIII desta vez associado a Leipzig, cidade que o adoptou como seu e onde eventualmente ganhou fama e dimensão.

Quem fazia Goses estava-se marimbando para a lei da pureza (Reinheitsgebot) até que eventualmente os Bávaros abriram uma excepção para este estilo regional. Um pormenor, talvez ainda mais curioso que o facto de existir cerveja salgada, é que as Gose foram, provavelmente, as primeiras cervejas com carbonatação.

Largamos a história e voltamos ao presente, o nosso presente, o presente que escrevemos, que vos trazemos, e oferecemos – sem truques, tudo transparente.
Os astros alinham-se, criando uma constelação de especiarias. Uma aventura pelo desconhecido, onde o único limite é… esperem… isso, rigorosamente nada.

Nem tudo o que parece é, o truque da ilusão, fazer acreditar sem ser real, sentir sem existir. Conseguimos? Trocar os olhos e o palato, desafios que põem os sentidos à prova, pondo num copo de cerveja mais empenho que as palavras cruzadas ao domingo.
Trazemos o Ying Yang da cerveja, o preto põe-se no branco e o branco no preto, forças contrárias que se equilibram, criando uma nova dimensão que nos leva num sonho lúcido.

Com uma roupagem malte Pale e Espelta, adereços de Cara-pils e Special B, esta cerveja veste-se com o seu melhor vestido preto de Sinamar e chocolate extraído a frio, lábios pintados de cor de hibisco, para uma noite recheada de glamour. Hoje ninguém a pára, é o seu dia. Maquilha-se com melaço na fervura – afinal, só interessa a cor. Perfuma-se com coentros, laranja amarga e alcaçuz. Um apontamento dourado, já no copo. Falta só um pouco de sal e está tudo apurado para esta noite. Inesquecível.

Levamos tudo ao extremo e complicamos sempre que nos dão uma chance. É agora a vez de acidificar o mosto com cereal. O processo para acidificar o mosto é idêntico ao da Grisette com Alfazema, primeiro garantimos conversão dos amidos com brassagem, seguido de um mash-out, para desnaturar enzimas, prevenindo conversão excessiva, e garantido um maior nível de estabilidade no mosto.
Arrefecido até 48ºC, entre pizzas e conversas regadas com boas cervejas, adicionamos um pouco mais de grão moído. Como valorizamos o que é nosso, os bichos hoje são portugueses, do nosso trigo autóctone, Barbela. Todos os cereais têm várias culturas presentes na casca,mas nem todas nos interessam, portanto o pH deve ser ajustado para os 4 – 4.4 para garantir que nenhuns patogénicos se possam desenvolver no mosto. Agora é descansar, que em 48 horas recomeça a segunda mão.

Início da segunda-mão. As equipas entram em campo debaixo de um calor abrasador. Damos o pontapé de saída com ajuda de uns mojitos e umas iguarias grelhadas no lume. Combate-se o calor como se pode – custa, mas alguém tem que fazer este trabalho. Mosto em rampa com destino à fervura de 90 minutos, para promover precipitação das proteínas do trigo e da espelta. Para ajudar a obter a cor escura que pretendíamos, fizemos uma extracção a frio do malte chocolate, adicionada antes da lavagem do cereal, para contribuir cor. Além disto ainda recorremos ao Sinamar para obter cor. Mal sabíamos que, mesmo com estes dois elementos, íamos ficar no castanho e não no tom escuro pretendido.

O gaiato do vizinho tinha feito uma sopa de terra, achámos que também podia ir para a panela.

Tudo escorrido, lavagem do cereal feita, e fervura iniciada (ainda que nunca muito convincente nesta nossa máquina alemã). Aos 60 mins é altura de adicionar algum lúpulo. Agora já com o mosto acidificado, não corremos o risco de inibir o processo de acidificação com a adição, mas ainda assim nesta cerveja não pretendemos muito amargor. Dose pequenina só para equilibrar o mosto.

Peta-zetas de feijão verde.

Guardamos o melhor para o fim da fervura. O spice mix para esta cerveja foi meticulosamente planeado e pensado quanto à interações dos elementos. Só que não. Na realidade era o que havia à mão, ou no saco, mas porque o destino quer, por amor a esta arte ou simplesmente por mera sorte, todos os elementos até combinavam. Sabores cítricos das sementes de coentros e laranja. Jogo de duplas para a especiaria, entre os Hibiscus e a raiz de… licorice, ou regaliz, ou alcaçuz ou? Raios, escolham vocês o nome… E no final, como estamos a fazer uma Gose, há sal para temperar a coisa.

Com umas ostras e flocos de ouro o feng shui fica alinhado, ao contrário da densidade final, que ficou fora de ordem. Para cima, neste caso. Como estávamos com mosto a menos decidimos diluir com água para voltarmos à densidade planeada. Neste caso não temos problemas com alteração de amargores, porque a cerveja também não é para ser amarga.

Segue acerto de pH com 6 ml. de ácido láctico para ficarmos nuns mais confortáveis 3.68 antes de passarmos esta mistela para dentro do fermentador. Para cerveja alemã, levedura de origem alemã também: a K-97. Também esta escolha foi fruto de grande curadoria, excepto que era o que havia à mão. No fundo cumpre o seu papel de uma fermentação relativamente neutra, deixando o brilho para os adjuntos. Os astros alinharam-se.

Jogo feito, nada mais. Ora passa aí essa entremeada e o meu mojito, oh faz favor…


Gose escura com os restos da cozinha


Lote: 20L
Total Cereal 5kg
Densidade Inicial: 1.060
IBU: 5
Tempo de fervura: 90 minutos

Cereal

50% – 2.5 kg. Pale Ale
30% – 1.50 kg. Wheat
5% – 0.25 kg. Oats
5% – 0.25 kg. Special B
4% – 0.20 kg. Chocolate Wheat
6% – 0.30 kg. Chocolate Rye

Lúpulo

5 gr. Columbus (pellet, ~14% AA) @ 60 min.

Extras

Yeast nutrient @ 5 min.
Alcaçuz – 20 gr. @ 5 min.
Hibiscus – 80 gr. @ 15 min.
Coentros – 30 gr. @ 5 min.
Laranja – 20 gr. @ 5 min.
Melaço – 500 gr. – @ 60 min.
Sal – 17,75 gr. / 275 ppm @ 10 min.
Sinamar – 50 gr. @ 20 min.

Levedura

Fermentis K-97

Água

Ca: 49
Mg: 3
Na: 271
Cl: 412
SO4: 99
Cl to SO4 Ratio: LOL

Brassagem

Saccharification – 60 min. @ 66ºC
Mash Out – 10 min @ 76ºC

pH@45 min 5.34 pré-acidificação
Acidificação com 500gr trigo barbela durante 48h para pH 3.6

Observações

19/07/2020
Adicionados mais 20 gr. de Sinamar para acertar a cor no ponto que queriamos

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