Old Ale à moda do Old Fashioned – Parti-Gyle English Bitter

2 por 1 – fazemos as malas e vamos passear. Primeira paragem em França para cumprimentar o nosso amigo Lavoisier, “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Tudo fará sentido, prometemos.

Falemos agora de arte, jogando as cartas para a mesa. Fazer cerveja é uma arte, por mais que a minha mãe discorde. É a expressão de um indivíduo, de ideias, experiências. Damos um salto à Grécia antiga, mas não lhes digam que isto é sobre cerveja que os homens ficam logo nervosos. Aristóteles, ao contrário de Platão, defendia que toda a arte, enquanto imitação, é criativa e dinâmica.

Para nós essa inspiração também acontece em momentos, experiências, conversas. Tudo isso capturado, contado e vivido, mais tarde, num copo. Não vamos enganar ninguém, a nossa inspiração, ao contrário de outras artes, nem sempre vem da natureza. Nunca foi feita uma cerveja inspirada nas vacas a pastar em Miranda do Douro. Bom, até agora pelo menos.

Isto tudo para dizer que um Old Fashioned, que parecia não ter qualquer história, acabou aqui. Uma mensagem numa garrafa. Cerveja é arte.
Atravessamos o Atlântico e pedimos ao Jerry Thomas um Old Fashioned, ele agarra num copo de mistura, um solitário cubo de açúcar algumas gotas de Angostura Bitter, gentilmente macerado. Preenchido com gelo e Bourbon (em alternativa, whisky de centeio) é mexido e não batido. Servido num copo baixo, gelo e um pedaço de casca de laranja, acabada de cortar. Quando quiserem desenjoar da cerveja já têm aqui uma ideia. Dicas de borla.

Voltamos para a Europa, com paragem em Londres. Temos Martyn Cornell como guia privado, falamos da grande inundação de 1814, falamos sobre as diferenças entre uma stout e uma porter e ainda mandamos umas piadas sobre ostras na cerveja. Mas o que queremos mesmo saber é, sem surpresa, o que é uma Old Ale?

Cervejas de guarda, fermentações prolongadas em balseiros, deixando a microflora proliferar e expressar-se. Densidades iniciais altas, com suficiente doçura residual para equilibrar o calor proveniente do álcool. Talvez porque não existiam plataformas para assinalar as cervejas bebidas ou porque não havia concursos para condecorar as melhores produções, o mercado tinha de se adaptar. E sem os contributos do já mencionado Martyn, bem como os de Ron Pattinson e Pete Brown, a história seria ainda mais confusa.

No final do século XIX aparecem as primeiras cervejas a que os cervejeiros se referiam como Old Ales. Com o virar do século, e alguns dos momentos mais pobres da história da humanidade que com ele vieram, estas cervejas foram remetidas a um papel secundário.
Contra a escassez, com que todos tiveram de aprender a viver, era preciso reinventar, fazendo de tudo para tirar o maior proveito possível do escasso cereal disponível. No Homebrewer’s Guide to Vintage Beer de Ron Pattinson, vemos a evolução de densidades ao longo dos anos, a Whitbread Mild Ale, que no início do século estaria entre 1.050 e 1.060 de densidade especifica, durante a 2ª Guerra Mundial estava abaixo dos 1.030. Mesmo em tempos de crise a produção de cerveja não pode parar, é uma bebida com importância social sem rival.

As técnicas, como os estilos, evoluem. A ideia de limpar o cereal, com uma segunda brassagem, para produzir duas cervejas diferentes tinha sido abandonada no século XVIII. Em meados do século XX a técnica mantinha-se ainda, mas agora para afinar a densidade final. Ambos os mostos eram produzidos, fervidos separadamente e no final eram misturados. Esta fica para outro dia, a ideia de ter ficar com o dobro da cerveja no final do dia seduz mais.

It’s a two person job

Respeitando a tradição – tanto a vetusta inglesa, como a nossa de nos colocarmos em trabalhos, abraçamos o parti-gyle. Gestão de panelas, mete mosto, tira mosto, faz caramelos e figas para que corra tudo bem. Começamos com a brassagem da Old Ale, com contas um pouco a olho, para conseguir o milagre de enfiar todo o cereal no cesto. Água preparada, com uma dose generosa de minerais – aqui não há água mole, podem trazer as pedras que quiserem.
Conversão a acontecer, desta vez a beta-amilase não foi convidada para a festa, fica a alfa-amilase a fazer o trabalho.

Com o primeiro mosto pronto a levantar fervura começamos a conversão do segundo, com um ligeiro reforço de malte base e caramelo (e não é que conseguimos mesmo meter ainda mais no cesto?). Um perfil de água mais domado numa cerveja, também ela, mais contida. Tudo arrumado, hora de fazer caramelo. Xaropes de açúcar invertido sempre estiveram presentes na escola cervejeira do Reino Unido. Aliás não só aí, também na mesa de pequeno almoço a acompanhar panquecas e waffles.

Xarope feito a tempo de adicionar ao mosto a ferver, nutrientes para as famintas leveduras, antecipando um trabalho árduo pela frente. Arrefecido, transferido, infelizmente, o volume final ficou abaixo do esperado, não é grave, há mais uma panela cheia. Vamos a ela.

Conversão completa, açúcar de borla, podia ter acabado em biscoitos de cão, pão para os curiosos ou até a alimentar uns animais, mas não, este cereal usado deu ainda mais cerveja. Entusiasmados com o sucesso da nossa cruzada, restava uma questão, e o lúpulo? Chamem-lhe destino, havia um First Gold a chamar por nós.

Duas cervejas num dia? Feito. Levedura dividida e mostos inoculados. Agora vamos esperar 2 anos? Acho que sabem a resposta.

A Bitter, o estilo onde se encaixaria esta segunda etapa do parti-gyle, naturalmente, terminou a fermentação bastante rápido, maturada com gelatina para ajudar a precipitação de matéria sólida, transferida para um barril e pronta a combater os tórridos dias de calor ao virar da esquina.

A Old Ale, mesmo com mais de 30% de headspace, teve uma fermentação vigorosa, digna de uma verdadeira levedura de top cropping. Acabou a fermentar aberto, em exposição a oxigénio, durante 48h. Controverso, mas decididamente tema para outras núpcias.


Baixou o krausen explosivo, entrou a madeira, pedaços de barricas de whisky para simular a maturação histórica.

Tintura de laranja preparada para brilhar, trazer o perfume como lhe traz num Old Fashioned.

Faltam dois elementos, um no cocktail – Angostura – e outro na cerveja – Brettanomyces. O primeiro, fazendo lembrar iodo, cria um conflito com a cerveja. O segundo cria um conflito com o cocktail. Embora as Old Ale tivessem muitas vezes presença de leveduras selvagens, ou não fossem os primeiros vestígios destas culturas provenientes de Inglaterra, tivemos de sacrificar gosto pessoal e coerência histórica em prol da nossa missão. Homenagear um cocktail clássico com uma cerveja, de certa forma, moderna.

E é isto, com uma simples garrafa conseguimos de falar de países europeus, história, ascensão da cultura de cocktails, é esse o charme da cerveja. Não há limites, é uma bebida democrática, sempre, na sua produção ou no seu consumo. Está presente na vida social e em momentos de celebração, nos melhores e piores episódios da história, na comédia e no drama.
Esteve presente ontem, está presente hoje, estará presente amanhã. Saúde!


Old Fashioned Ale / Bitter Parti-gyle


Lote: 15L / 20L
Total Cereal 6kg / 2kg
Densidade inicial: 1.101 / 1.042
IBU estimado: 37 / 22
Tempo Fervura: 90 minutos / 60 minutos

Cereal

75% – 5 kg. Maris Otter / 1kg Maris Otter
12.5% – 1 kg. Crystal Dark / 1kg Premium English Caramalt
12.5% – 1L Golden Syrup

Hops

30 gr. Columbus (pellet, 14% AA) @ 60 min. / 25gr First Gold (whole leaft, 7.5% AA) @ 60min. + 80gr @whirlpool

Levedura

WLP006 – Bedford English Ale Yeast com propagação em 5L
Dividido pelos dois lotes com uma conspícua falta de rigor.

Água

Ca: 144 / 69
Mg: 30 / 16
Na: 177 / 28
Cl: 234 / 102
SO4: 131 / 72
Cl to SO4 Ratio: 1.78 / 1.41

Brassagem

Sacarificação a 69ºC por 60min. / Equipa que ganha não mexe.

pH@30 min 5.80 – 3.5ml ácido láctico / pH@pre-boil 5.39
pH@60 min 5.32

Observações

27/04/2020
Mosto(s) produzido(s), inoculado(s), começa(m) a festa, daquelas com drogas, com bateristas de bandas a espumarem pela boca.

08/05/2020
60gr de recortes de barrica de whisky (Old Ale)

09/05/2020
Parti-gyle feita e embalada, pode começar a festa agora. Densidade final 1.012

23/05/2020
Blend com a tintura de laranja, diluição de 1%, 1ml por cada 100ml de cerveja, total de 130ml para 13L de produto embalado a 2.1 volumes de Co2.
Densidade final 1.022

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