Sarracenator – Doppelbock com Trigo Sarraceno

Eis mais uma lager no nosso Hotel. Uma Doppelbock, um estilo alemão oriundo da região Norte de Einbeck do século XIII, sendo que nessa altura a cerveja era feita com um terço de trigo e era de fermentação alta. Mais tarde, no século XVII, foi transformada pelos rituais monásticos bávaros no pão líquido que servia de sustento aos monges, mudando para a versão que conhecemos nos dias de hoje. Como curiosidade, a nomenclatura das Doppelbocks segue tipicamente uma regra de ter um nome que deve acabar com “-ator”.

A outra curiosidade das Dopplebocks, é que à 5ª caneca no Stark Bier Fest – um festival em Munique, semelhante ao Oktoberfest, mas dedicado especificamente a este estilo de cerveja – adquires o estatuto de Herói e deixam-te dormir numa cadeira no meio pátio da Paulaner, sem te chatearem muito. Afinal bebeste 5 litros de Salvator, cerveja de 8% – a primeira a ter o sufixo “ator” que iniciou a tradição – mas não te salvas de uma ressaca valente.

Das memórias para o presente, no Brett Hotel gostamos de experimentar com ingredientes diferentes e desmanchar os clássicos.
Para hoje trazemos uma cerveja com trigo que não é trigo! Confusos? O nome trigo sarraceno engana e na realidade este “pseudo-cereal” não é primo do trigo e nem sequer é cereal. É uma semente, sendo que está até mais próximo do ruibarbo. Não sendo totalmente estranho ao uso em cerveja, é mais utilizado para fabrico de cervejas sem glúten.

Já perceberam o “Sarracenator” ?

Ora e agora como é que se põe isto na cerveja? Alguns fornecedores até vendem trigo sarraceno como cereal maltado pronto a usar, mas não temos acesso a nada disto e no fim acabamos com um trigo sarraceno em cru, tal como se vende no supermercado. Após sucessivas investigações pela Internet, livros e discussões chegamos a dois possíveis métodos, torrar ou cozer, ou melhor devia ser cozido e depois torrado. Como não nos entendemos, fizemos ambos. Metade foi ao forno a torrar, durante meia hora a 150ºC. A outra metade cozeu em água, por 30 minutos.

Dois dias antes foi feito um starter de 4,5L para a levedura inicial, com densidade de 1.037, resultando num pitch rate cujo termo técnico adequado é… bué células. Para os cromos dos números: 2M células / mL / °P. Este é um aspecto essencial para lagers “high-gravity” onde os requisitos da quantidade de levedura são bastante superiores aos uma cerveja de fermentação alta de igual extracto, em parte pela baixa temperatura de fermentação que impõe um obstáculo adicional à levedura.

Depois de muita criatividade quanto ao processo de brassagem para esta cerveja envolvendo decocções, múltiplas extensões eléctricas e brassagens paralelas, a simplicidade acabou por falar mais alto e optamos por um mais tradicional Hochkurz mash, um regime já preferido por muitas das cervejeiras Alemães. Pequena mudança aqui, adicionando um passo intermédia a 55ºC, qual cereal-mash, para ajudar a processar o trigo sarraceno.

A adicionar o trigo serraceno cozido.

Acabamos por fazer uma mistura de abordagens para a brassagem do trigo sarraceno. A metade que foi tostada no forno, foi ao moinho de malte, a outra parte que foi cozida foi adicionada directamente na fase de mash-in, juntamente com os restantes cereais.

Panela cheia até não dar mais, como seria de esperar para uma cerveja destas. O aroma no ar era fantástico, cheirando a frutos secos, nozes e quase a fazer lembrar o cheiro de Nutella. Seguimos para as várias rampas do processo de brassagem. A máquina safa-se sozinha por isso é tempo de almoçar. Só para fazer pandã e como o resto do trigo sarraceno não é para mandar fora, toca de fazer pasteis de atum e trigo sarraceno, receita emprestada e modificada das Receitas Tolerantes.

Brassagem terminada, lavagem do cereal feita. Antes de iniciar a fervura da cerveja, tempo de avaliar a cor. Aqui gostamos das Doppelbock mais para o lado do escuro. A nossa estava clara, fruto do desvio de cor do trigo sarraceno usado e dos cálculos do Beersmith. A densidade da cerveja acima do esperado, afinal o potencial do trigo sarraceno foi maior dos que o antecipado. Tempo de fazer acertos. Para afinar a cor recorremos ao Sinamar da Weyermann – produto natural, kosher, derivado do malte Carafa – que é normalmente usado nas Black IPAs e que normalmente está na despensa ao lado do arroz (todos vocês têm sempre Sinamar à mão na despensa, certo?). 5gr para ganhar os EBCs até estar ao nosso gosto.

Fervura sem a mantinha à volta da panela, não rende o mesmo – nunca se esqueçam, não façam como nós – e por causa disso foi preciso acertar a densidade final, sendo que optámos por ferver o mosto duas horas, até atingir o valor pretendido. Já sabem que não temos amor ao tempo, e de qualquer forma havia cerveja para engarrafar.

Lúpulo os monges não tinham muito ou não gostavam de usar e quem somos nós para contrariar. Pequena adição de lúpulo de amargor neutro, para que a cerveja não fique demasiado doce. Simples e sem inventar, queremos é o sabor do malte. Neste caso, como fervemos mais meia hora do que o planeado, adiamos a entrada do lúpulo.

Para fermentação, o programa das festas é ligeiramente diferente. Início da fermentação a 11ºC na câmara fria, ao fim de duas semanas, subida de 0,5ºC a cada semana até aos 12ºC, para estagiar nesse patamar durante 1 semana e subida aos 16ºC para eliminar o diacetil da fermentação, durante 3 dias. Cold crash durante mais um par de dias e transferência para um “corny keg” purgado de oxigénio.
A partir daí começa a fase de lagering, da palavra alemã “guardar”, na arca frigorífica mais fria possível, por 157 dias até estar no ponto – ou quando estivermos mesmo com muita curiosidade, o que acontecer primeiro.


Doppelbock com Trigo Sarraceno


Lote: 18L
Total Cereal 7,47
Densidade inicial: 1.080
IBU estimado: 42
Tempo Fervura: 90 minutos

Cereal

74% – 5.53 kg. Munich I
20% – 1.49 kg. Trigo Sarraceno
4% – 0.30 kg. Biscuit
2% – 0.15 kg. Carafa Special II

Hops

17 gr. Warrior (leaf, ~17% AA) @ 45 min.

Extras
Levedura

Wyeast 2308 Munich Lager

Água

Ca: 60
Mg: 3
Na: 36
Cl: 60
SO4: 79
Cl to SO4 Ratio: 1.3

Brassagem

Hochkurz Mash modificado:
Sacarificação – 20 min @ 55ºC
Sacarificação – 30 min @ 62ºC
Sacarificação – 45 min @ 71ºC
Mash Out – 10 min @ 76ºC

pH@45 min 5.42@19.2ºC

Observações

24/05/2020
Cerveja transferida para keg e colocada a fazer laggering num sítio onde realmente chegue a temperaturas baixas.

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