Rawdler (Raw Ale)

Voltamos a viajar por paragens Nórdicas, para mais uma visita às práticas ancestrais cervejeiras nas quintas Norueguesas. Estamos algures entre o século XVII e XVIII. Aqui manda a tradição e não a ciência. Desafiam-se simples convenções do mundo moderno que tomamos por certas. Senão, vejamos:

O cereal não vem da loja de homebrew já moído, pelo contrário é plantado nos terrenos da própria quinta, maltado e moído em mós de pedra.

A brassagem é feita em tanque de madeira, por isso o mais fácil é colocar umas pedras ao lume e deitar as pedras quentes para o meio do malte e água para aquecer a brassagem para a temperatura certa. E que temperatura é essa? Esperem, não se usa termómetro para verificar a temperatura da brassagem, espeta-se os dedos diretamente na brassagem e sente-se a temperatura. Aguenta cinco dedos dentro do mosto? Ainda não está quente o suficiente. Um dedo apenas? Ahhhh, agora sim. Foi assim que nos ensinou Simonas Gutautas.

Não se ferve a cerveja porque para isso era preciso uma panela em metal de grandes dimensões e isso naquela altura era caro pa xuxu e tinha melhores usos. Como não há fervura, também não se ferve o lúpulo, nem há isomerização de ácidos alfa, ainda que o lúpulo seja usado de outra forma. Existe pouca ou nenhuma precipitação de proteínas, o que ajuda a explicar o facto dos Raw ales não guardarem muito bem. Tendo pouca estabilidade, devem ser bebidos ainda novos preferencialmente.

Mas esperem, se não fervemos a cerveja, certamente então estamos a fazer uma cerveja azeda ou ácida, certo? Isso não se pode beber assim que faz mal!

Hum…. não. Uma das razões para ser ferver o mosto é para o pasteurizar, mas esta não a única razão, nem sequer é a única maneira de o fazer. Tipicamente a brassagem nestes casos é feita a temperaturas mais altas até aos 75º C durante mais do que uma hora o que permite atingir também a pasteurização do mosto e ter uma cerveja, que com a ajuda das substâncias protectoras do lúpulo e o rápido trabalho da levedura resultará numa cerveja limpa.

Mas como não há fervura do mosto (lembrem-se que estamos a fazer cerveja em cubas de madeira) e sem isomerização de alfa ácidos dos lúpulos, é preciso arranjar outra maneira de incluir o lúpulo na cerveja. E a solução passa por fazer um “chá” de lúpulo. Usando uma pequena porção de água ou um pouco do mosto inicial, ferve-se uma porção de lúpulo numa panela à parte, esta mais pequena e provavelmente a mesma usada para cozinhar as refeições.

O Caldo Verde estava esgotado, portanto sopinha de Lúpulo.

Tudo isto nos parece impensável nos dias de hoje. Mas acontece que nós pensamos nisto.

Mãos à obra para fazermos o nosso raw ale com equipamento moderno. Panelas de metal tornaram-se uma coisa banal e por isso, ao nosso processo demos um twist aqui e ali em algumas partes. Não é 100% “farmhouse“, mas para primeira experiência está perto.

A brassagem começou a 55º C com incrementos de 2°C a cada 10 minutos, até aos 67°C. Pequeno pit-stop pelo meio para acerto do pH que estava nos 5.64 e foi trazido para baixo para os 5.5 com ácido láctico (bah, modernices). Depois disto respeitamos a tradição de brassagens longas e deixamos a brassagem e a recirculação correr livremente enquanto fomos engarrafar uma cerveja e malhar uns copos. Tempo total de brassagem? X horas, quem sabe? O certo é que o mosto ficou impecavelmente filtrado e transparente.

Como temos panela com cesto, no fim separamos o grão do mosto. Escorremos e lavamos o malte para atingir o volume pretendido. Ainda alguma água adicionada para acertar a densidade final que estava alta.

De seguida adicionamos a nossa papa de lúpulo, previamente fervida durante 30 minutos, ao mosto e subimos para temperatura para 82ºC, para não facilitarmos na pasteurização.

Os Raw Ales tradicionais da Noruega tipicamente usam ramos de zimbro, colocados no fundo do tanque de madeira para ajudar a fazer uma cama de filtragem para o mosto, e também como forma de limpeza/sanitização já que o zimbro contem propriedades antisépticas, à semelhança do lúpulo. Como a nossa panela tem filtro em baixo não precisamos disto e surge aqui o próximo twist. Até porque não tínhamos ramos de zimbro à mão… Venha dai uma lúcia-lima, apanhada fresca e adicionada nos momentos finais da pasteurização juntamente com chá de lúpulo.

Cruzamos tradições Norueguesas e Lituanas na mesma cerveja. Há pontos de contacto, as cervejas de quinta existem historicamente em ambos os lados. Seja as Maltøl na Noruega ou as Kaimiškas na Lituânia, há traços comuns. Processo do mais artesanal que há, tanques de madeira, não há fervura, o malte é da própria quinta, o lúpulo também. Muda o uso do zimbro e a levedura usada e com isso vêm também diferenças no perfil em termos de sabor.

Para esta cerveja nada como usar uma levedura também ela histórica, das quintas Lituanas. Mas antes trazemos mais um cervejeiro da velha guarda: Julius Simonaitis. Cervejeiro h´a mais anos que muitos de nós estamos vivos e ainda do tempo em que a cerveja não se vendia. Antes fazia-se e partilhava-se. Para eventos importantes como casamentos ou em qualquer dia só porque sim. Quando havia fumo na chaminé a malta aparecia. Ritual quase parecido ao beber uma Radler de manhã antes de começar o nosso dia de brassagem. E assim se forma uma comunidade. E dessa mesma comunidade vem esta levedura que era usada e partilhada.

O tio Júlio, herdou do pai todas as ferramentas e barricas necessárias para fazer e armazenar cerveja. Através dele o mundo herdou esta levedura, para que nós pudéssemos aqui no nosso cantinho fazer uma bejeca com isto.

O perfil sensorial do Simonaitis remete a frutas tropicais (maracujá, laranja e goiaba), frutas de caroço e produz tons de especiarias picantes, terrosos e ervas. Já no perfil de temperatura e fermentação o Simonaitis gosta de fazer o seu trabalho aconchegado no quentinho dos 35º C e é um rapaz despachado tal como os Kveiks Noruegueses.

Tal como o tio Júlio. Que bons amigos.


Rawdler


Lote: 20L
Total Cereal 4.51 Kg.
Densidade Inicial: 1.048
IBU: alguns
Tempo de fervura: mas qual fervura pah?

Cereal

40% – 1.8 kg. Malte Pilsner
40% – 1.8 kg. Malte Trigo
15% – 0.68 kg. Malte Espelta
5% – 0.23 kg. Malte Centeio

Lúpulo

100 gr. Saaz (pellet, 4.5% AA). Hop tea fervido durante 30 min.

Extras

Nutrientes Levedura @ 5 min.

Levedura

The Yeast Bay Simonaitis Lithuanian Farmhouse – WLP4046

Água

Ca: 48
Mg: 9
Na: 28
Cl: 48
SO4: 63
CL to SO4 Ratio: 0.77

Brassagem

Sacarificação – uma (in)certa e (in)determinada quantidade de minutos @ 67ºC
Mash Out – 10 min @ 76ºC

pH@ 5.5

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