Coragem e Fé (Imperial Pastry Stout)

Há momentos especiais que precisam de ser recordados. Há outros momentos que passam sem deixar marca, ou pelo menos, achamos nós. Porém, mesmo quando parece não haver seguimento, levamos algo connosco. Tudo isto começou com uma brincadeira, correu mal, nunca escrevemos sobre isso. Em nossa defesa, foi antes de isto ser oficial.

Há muito tempo atrás, numa tentativa de inocular mosto somente com a flora presente em uvas fizemos a nossa primeira brassagem. Foi uma cerveja de Coragem e Fé, como a de hoje.

Com a tentativa de grape ale, falhada, pelo menos levámos uma coisa para casa: um kit de filtração de água para eliminar o cloro. Erro de principiante, é verdade.
Passado um ano, com mais umas quantas histórias para partilhar sobre falhanços e vitórias, voltamos com a Coragem e Fé renovada. Celebramos esta data especial com uma cerveja – esperamos nós – também ela especial.

Mesmo que tudo corra mal e este projecto nunca veja a luz do dia pelo menos fica um registo fotográfico memorável, ainda que pouco elegante. Fizemos como o JJ e pusemos a carne toda no assador. Não, o malte todo na brassagem. A carne fica para mais tarde.

Uma das primeiras cervejas que fizemos foi uma Imperial Stout, estilo esse que vive ainda hoje como uma das razões para fazer cerveja em casa quando elas não existiam à venda em Portugal. Como os estilos podem ser interpretados de tanta forma, não choca que as duas em nada sejam parecidas. Vá, na cor até são, fora isso nada é igual à primeira que fizemos.
Esta brassagem devia ter sido numa terça ou quarta-feira às 20h00, digna de um jogo de liga dos campões. Como nesses jogos, temos de apresentar a nossa melhor versão. Largamos a tímida Braumeister que não foi feita para isto, chamamos o peso pesado, uma cuba de 50L. Sim, leram bem.

Poderá ter caído um pinguito ou outro para fora da panela…

Tudo isto dá vontade de escrever e dissertar sobre a eficiência de cada sistema. Infelizmente isso dá muito trabalho e é preciso referenciar ligações e mencionar livros. Felizmente, se acompanham o blogue até devem gostar de cerveja e quem gosta de cerveja também não deve ter dificuldade em procurar mais sobre isto das eficiências. Começamos a aula pelo fim, a nossa eficiência é penosa, como aquele colega que sacou um 2 (em 20) num exame da faculdade. É só ridículo.
Portanto, entre 18kg de malte de cevada e outros cereais, muitos açúcares se perderam – houvesse mais tempo e vinha mais um parti-gyle – porém a missão de hoje é mais importante, atingir 40º Plato. É possível? Com Coragem e Fé tudo se consegue. Objectivo traçado, falta um plano para a execução, dar uma roupagem.

Tiramos da cartola um caixote de ideias de pastry stouts e aqui vamos nós, abraçar estilos modernos. Salted Caramel Imperial Pastry Stout. Esta coisa de abraçar ideias modernas vem da época de confinamento, dizem que fez mal a muitos, não fomos excepção. Num mundo virado do avesso, bombardeados com apresentações em directo, conversas, viu-se de tudo. Dias a fim passados em casa em que as horas se trocavam e os dias pareciam estar em constante ciclo interminável, noites passadas em branco. Felizmente, qualquer que seja a hora, há sempre acção em alguma parte do mundo. Virtualmente saltámos até ao outro lado do Atlântico, numa conversa entre o Richard Preiss e um senhor de grandes dimensões de um cervejeira até então desconhecida para nós, a Fair State Brewing Company.

Intervenientes opostos: um académico, científico; o outro, cervejeiro, sabe a prática mas ignora a ciência por trás. Assim como as avós deste mundo que nunca foram à escola de cozinha e rebentavam com muito betinho de restaurante de estrela Michelin, aqui o cervejeiro “bronco” também tem histórias e técnicas para partilhar.
Ao longo de uma conversa onde vários temas foram falados, entre cocktails com cerveja, slushies, NE IPA e Pastry Seltzers, houve um que ficou na memória: Pastry Stouts.

Em tudo honrou o que define a comunidade da cerveja artesanal, partilha, aberta, sem medos nem truques. Juntos somos mais fortes e só assim podemos crescer. Mesmo com uma abordagem mais prática, com pouco foco na teoria o princípio alinha-se.

Brassagens de 15 minutos a 71ºC, limitando conversão de amidos, e com grande parte do extracto fermentável a vir da dextrose adicionada na fervura. Parece simples, e é: aqui o cervejeiro procura simplesmente a hidratação dos amidos e limitar a acção das enzimas que os poderia converter em açúcares simples.

Com a cuba a transbordar por fora, é tentar acertar os números, já que andamos mal habituados com todos estes sistemas eléctricos. Grão dentro da panela – que, sem surpresa, não coube todo. Por outro lado, e aí sim, para nossa surpresa, temperatura desejada atingida.

Como o cereal teimava em não querer entrar na cuba, saíram uns 3L de mosto que foram caramelizando separadamente, e deram lugar ao restante cereal. Volvidos 30 minutos, com os amidos hidratados, começamos o vorlauf. Agora sim damos uso à nossa pequena panela para albergar este mosto.

Tampa de Braumeister durante a semana, prensa manual para mash nas horas livres.

Nada de muito relevante a acontecer, só uma limpeza do grão a demonstrar o melhor espírito de desenrascanso tuga, inventando na hora um “mecanismo” para prensar o mosto de forma extrair a maior quantidade de líquido e açúcares ao nosso alcance, como quem diz um mash filter manual. Coragem, fé e força, que ainda deu luta prensar 18 kg de malte até extrair o mosto necessário. Mosto na quantidade pretendida finalmente, lá vamos nós subindo lentamente para fervura.

Agora começa o vendaval dos açúcares, há um certo receio que a panela fique diabética e perca uma das pegas. A meta está traçada, agora temos de lá chegar a qualquer custo. Quantos açúcares precisam para atingir 40ºP?

Podia ser só um, mas não tinha a mesma piada…

Mel de Manuka – um mel com propriedades medicinais, mas para nós só uma fonte de açúcar com mais classe do que mel multiflora. Porquê? Existia e um gajo até que nem gosta de desperdiçar, também eram só umas 250gr.

Melaço – mais um quarto de quilo. Como não adorar umas notas de melaço numa Imperial Stout? Pois exacto, bora lá.

Açúcar amarelo – é quase açúcar branco mas tem um pouco de melaço misturado para parecer mais saudável. Se fosse pela saúde ou pelas calorias esta cerveja nem no papel tinha lugar. Depois partilhamos as calorias e comparamos com um Big Mac e vemos quem ganha.

Lactose – está na moda para a cerveja como o leite sem lactose está na moda para a malta do fitness. Prioridades. Deixem o preço baixo que o mercado agradece.

Maltodextrina – esta é para se mastigar e precisa de um incentivo extra. Na dúvida se foi suficiente há uma solução, pôr mais.

Digamos que estava a puxar para o espesso.

Cinco adições de açúcares diferentes, depois deixamos o mosto ferver livre e alegremente. Para nosso deleite isso significa algum tempo de borla para limpar umas cervejas. Mais propriamente 3 horas de fervura. Quem diz que não a isso.
Lá vamos medindo o pH, tentando garantir que não baixa dos 5.2, ajustando com bicarbonato de sódio e assistindo ao circo da fervura a querer vir parar fora da panela. Na hora final de fervura, já com 31ºP, damos uma boa dose de lúpulo, apontando para os 90 IBUs teóricos, contrastando com todos os açúcares que lá ficarão após fermentação. Volvida a última hora de fervura e uns ajustes pelo caminho damos uma dose reforçada de nutrientes para que a levedura aguente uma batalha heróica.

Com Coragem e Fé chegou-se ao fim do dia de trabalho. É chegada a hora de fazermos uma reza à levedura, para que tenha forças e que consiga travar esta luta até ao fim. Até porque devíamos ter feito um starter para este monstro de cerveja, mas nem sempre somos planeados e concisos e desta vez não aconteceu. Agora a Coragem e Fé fica do lado dela. E bem precisa.

15 litros de geleia. Um fermentador. Uma pequena levedura. Imensa Fé e Coragem.

Mas o dia não ficava fechado sem mais uma peripécia, medimos a densidade final e conseguimos inverter a escala de cores do refractómetro. Este só vai até 32ºP e pelo menos isso tínhamos, agora quantos mais platos ao certo ninguém sabe bem. Sorte a nossa que temos os amigos certos na indústria certa e lá se arranjou um equipamento para medir. E com isto temos o prazer de vos informar que acertámos no Plato Certo em Euros e levamos para casa uma geleia um mosto com 40% de açúcar.

Foi giro, desafiante e incerto, mas a verdade é que atingimos a meta, só esperamos que a levedura chegue ao fim também. Pode ser como na Lebre e a Tartaruga, um gajo faz isto com calma, e o importante é chegar lá.

Dêem todos uma força à WLP099 Super High Gravity Yeast, com Coragem e Fé juntos vamos conseguir. #tamojuntos


Salted Caramel Imperial Pastry Stout


Lote: 20L
Total Cereal 18 Kg.
Densidade Inicial: 1.175
IBU: 90
Tempo de fervura: 240 minutos

Cereal e fermentescíveis

43.8% – 9 kg. Malte pale ale
14.6% – 3 kg. Salted Caramel Crystal Malt
12.2% – 2.5 kg. Malte Munich I
7.3% – 1.5 kg. Aveia “Golden Naked Oats”
4.9% – 1 kg. Açúcar Amarelo
2.4% – 0.5 kg. Malte Carapils
2.4% – 0.5 kg. Malte Chocolate Wheat
2.4% – 0.5 kg. Malte Crystal Dark
2.4% – 0.5 kg. Lactose
2.4% – 0.5 kg. Malto dextrina
2.2% – 0.45 kg. Cevada Torrada
1.7% – 0.35 kg. Malte Black
1.2% – 0.25 kg. Melaço

Bónus – 250gr. Mel de Manuka + mix de lactose, malto dextrina e açúcar amarelo para acertar a densidade desejada.

Lúpulo

150 gr. Columbus (pellet, 14% AA) @ 60min.

Extras

Nutrientes de levedura @ 5 min. – 4 vezes dose recomendada
Mais duas doses duplas durante a fermentação ao 2º e 4º dia

Levedura

WLP099 Super High Gravity Yeast (era suposto fazer uma propagação? era…)

Água

Ca: 40
Mg: 6
Na: 153
Cl: 18
SO4: 88
So4 to CL Ratio: 5

Nota: esta água parece estranha e desequilibrada, o sal proveniente do malte de caramelo salgado (1% de sal de acordo com ficha técnica) vai equilibrar o valores de Na e CL para números mais redondos. Numa cerveja mais leve corríamos o risco de arriscar muito numa cerveja com excessiva mineralidade, podendo trazer adstringências indesejadas, com um plato final elevado estimado (>20ºP) essa percepção, esperamos nós, será menor. Um vez mais, Coragem e Fé.

Brassagem

Sacarificação – 30 min. @ 71ºC

pH@ 5.2 brassagem
pH@ 5.2 pós fervura

Observações

Leave a Reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.